sábado, 12 de julho de 2008

O Sorriso de Lagarto

Antonio Marcelo Jackson
(Volta Redonda-RJ)
09/07/2008 16:38:59


Por razões profissionais visitei a cidade sergipana de Lagarto há alguns dias. Meu papel era avaliar um curso universitário a partir da proposta apresentada pela Instituição de Ensino.
Devo confessar que vivendo inúmeras experiências como professor universitário no Rio de Janeiro e sul do estado, além de já ter feito esse mesmo trabalho para o Ministério da Educação em Minas, São Paulo e Paraná, viajei esperando encontrar problemas clássicos no ensino superior do Brasil, tais como, o eterno impasse entre tentar oferecer um bom curso e conviver com os dilemas do mercado (valor das mensalidades, evasão, deficiência na formação escolar dos alunos etc.). Admito que os encontrei, assim como também, identifiquei soluções compatíveis. Porém, não foi isso o que mais me surpreendeu. O que marcou profundamente minha visita foi a forma do curso - e os reflexos gerados nos alunos - convivendo com as condições estruturais da cidade. Vejamos parte a parte.
Lagarto é uma cidade de aproximadamente 80 mil habitantes (em termos populacionais próxima, portanto, de Valença e Barra do Piraí, no sul-fluminense) cerca de hora e meia de Aracajú, capital do estado de Sergipe. Sua disposição urbana apresenta apenas dois prédios com mais de três andares, fazendo com que a presença de casas seja a marca do lugar, além do fato de ocupar uma área bem maior que os núcleos citados acima. Não há ônibus urbano e a população local transita de um ponto a outro de carro, motocicleta, bicicleta ou simplesmente a pé. Não há também uma biblioteca pública (ao menos, que ofereça condições para um estudante universitário). Sua economia funda-se na agricultura, em algumas indústrias alimentícias e na produção de tabaco.
Paralelamente, a Faculdade em questão apresenta uma biblioteca compatível com sua proposta e que é compartilhada com os demais estudantes da cidade, além de possuir um sítio na Internet com uma revista On Line e o curso também ter a sua própria página onde os alunos publicam seus artigos acadêmicos.
Nessa altura do texto, alguém pode estar se perguntando: qual o problema disso tudo? No final das contas, a faculdade e seus alunos não superaram todos os dilemas e apresentam um trabalho de qualidade? Sem dúvida que a resposta é afirmativa. Sem dúvida que, apesar das dificuldades, os resultados até aqui apresentados foram extremamente positivos. O que me chama a atenção é outra coisa; é a convivência dos inúmeros “tempos” do aluno/cidadão de Lagarto. Pensemos um pouco.
A Internet e as obras presentes nas prateleiras da biblioteca fazem com que esse estudante dialogue, sem constrangimentos, com qualquer outro, seja do Rio, São Paulo, Volta Redonda, Valença ou Barra do Piraí. Sua vida intelectual devidamente globalizada o transporta sem escalas para o universo de Braudel, Ricoeur, Chartier, entre tantos outros, e o faz desaguar em pé de igualdade nesses outros mundos. Contudo, esse mesmo estudante que por obra e graça da realidade virtual e das ações concretas da Instituição e professores caminha dignamente pela estrada acadêmica é também aquele que, transformado mais uma vez em cidadão, caminha, como andarilho, até sua casa ou trabalho - muitas das vezes em hora ou mais em passos largos. Há um paradoxo nos “tempos” vividos por ele, cuja fronteira, ao que parece, é o muro da Instituição de Ensino. Há um “tempo” de rousseaniana igualdade nas salas de aula, nos livros e computadores; há um “tempo” de capitalista desigualdade no esforço que se faz entre a casa, o trabalho e a faculdade. Enquanto o primeiro conforta por meio da esperança, o segundo sustenta por meio do esforço. Enquanto o primeiro alimenta a expectativa da mudança, o segundo confirma a certeza do sacrifício. Enquanto o primeiro o aproxima do mundo, o segundo o afasta.
Essa convivência paradoxal de um mesmo indivíduo em “tempos” e, inevitavelmente, espaços, diferentes me empurra à reflexão. Um primeiro aspecto reside na constatação do fato, na certeza de que habitamos e transitamos cotidianamente registros distintos e que os naturalizamos como inevitável contingência da vida. Por outro lado, me pergunto sobre o grau de interferência mútua de um sobre o outro, ou seja, até que ponto o andarilho interfere no mundo virtual e em que nível o mundo On Line se mistura e altera cada passo dado nas ruas. Ou, por fim, se há uma espécie de dialética que transforma e/ou transformará cada uma dessas partes, transmutando-as no novo.
Sinceramente não tenho respostas. Passados alguns dias, sei apenas que observando essa gente e lembrando dela acabei por lembrar de mim e dos “tempos” que diariamente transito e negocio, da mesma forma que vejo as inúmeras pessoas com quem convivo cotidianamente. Me pego, perguntando-me, o que nesse fluxo do dia-a-dia me ofertará no futuro. E enquanto o futuro não se transforma em presente, numa outra espécie de transmutação do tempo, sigo meu destino lembrando do sorriso das pessoas que lá conheci.
De certa feita, Mário de Andrade disse que nenhuma pessoa pode servir de exemplo a ninguém; quando muito, deve servir de lição. Lagarto, indubitavelmente, me foi uma grande lição.
Fale com o autor: marcelo@medioparaiba.com.br
Blog do autor: http://www.antonio-marcelo.zip.net/
Fonte:http://www.medioparaiba.com.br/revista/materia.php?l=085093100d62f099647f2bff490edfd5

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